Os Vivos e os Mortos (1987)

Uma festa com banquete sempre é vista como uma celebração da vida, da amizade, da família. Pessoas contentes conversando amenidades, enquanto cantam, dançam e comem. No entanto, existe algo no âmago, intrínseco à pessoa, que podemos não perceber, mas está lá corroendo a alma, pesando a mente, dissipando a esperança. É mais ou menos nisso que se estabelece Os Vivos e os Mortos, onde vemos uma festa do começo ao fim, e o sentido apenas se manifesta ao final de projeção. Esse é um daqueles filmes que podem não captar interesse a princípio, mas certamente possuem uma conclusão marcante.

Este é o último filme de John Huston, lançado postumamente alguns meses depois de seu falecimento. Um prestigiado cineasta com mais de 40 anos de carreira, ganhador do Oscar por O Tesouro de Sierra Madre (1948), tendo sido indicado outras 3 vezes. Pode-se dizer que este é um projeto familiar, já que sua filha Anjelica Huston, recém ganhadora do Oscar por A Honra do Poderoso Prizzi (1985), também dirigido por John Huston, possui um papel de destaque na trama, e seu filho Tony Huston escreveu o roteiro, indicado ao Oscar em 1988. O filme é dedicado a Maricela, cuidadora e última paixão do diretor.

Uma outra camada do carater intimista da obra é que se trata de uma adaptação de um conto de James Joyce, renomado autor irlandês conhecido pelo romance Ulysses. Tal conto é o que fecha a antologia publicada em 1914 chamada Dublinenses, que traz uma perspectiva mais nacionalista da Irlanda, contando aspectos culturais, religiosos e políticos do país na estrutura de histórias de caráter humano. O próprio John Huston, embora nascido nos EUA, tinha cidadania irlandesa e já morava no país há decadas, onde expressava bastante apreço pela cultura local, manifestado neste filme. 

Aqui temos a história de uma festa de Dia de Reis em uma casa aristocrata de Dublin no ano de 1904. Em determinado momento, chega o casal interpretado por Angelica Huston e Donal McCann, junto a diversos convidados que tratam de temas como música, poemas, igreja, e política. Toca-se um piano, recita-se um poema, dançam em pares, e finalmente ceiam, em meio a algumas reações alcoolizadas, conversas entediantes e discretos flertes. Aos poucos, vemos alguns detalhes sobre as características da nação irlandesa, como sua hospitalidade, sua convivência em guerra e relação a igreja, desvendando um certo viés aos desmandos da Inglaterra e à europa como um todo. Em certo ponto, observamos o espírito nostálgico e por vezes melancólico dos personagens em uma pura sensação da época na comunidade irlandesa. Inclusive o personagem Bartell D’Arcy é vivido pelo tenor irlandês Frank Patterson, que desempenha um papel crucial na trama. Mas afinal, é Anjelica Huston que traz uma sensível e potente interpretação, com todas as nuances de tristeza, luto, amargura e desilusão, estimuladas justamente pela performance do tenor. Embora tenham destaques pontuais, o restante dos atores não trouxe o merecido empenho para as telas. Por ora, pareceu uma encenação teatral, com os exageros de entonação, o que desvirtua um pouco do padrão cinematográfico.

Por outro lado, a trilha sonora funciona primordialmente, trazendo a suavidade na dose certa e o peso exato quando preciso. O mesmo se pode dizer do figurino (também indicado ao Oscar) e design de produção, que remetem diretamente ao periodo de mais de um século atrás, com uma fotografia que delimita bem os diversos momentos de alegria e desalento, e com tons que faziam juz à iluminação quente a velas no interior e às parcas iluminação frias noturnas no exterior em meio à neve.  

Uma crítica que é feita durante a narrativa é que não se pode viver do passado, já que se tem muito ao que se preocupar no presente. Os mortos já foram, dando lugar aos vivos. Contudo, talvez seja inevitável e estejamos rodeados de seres que só vivem do passado, como se já estivessem mortos. Um sentimento doloroso que, ao nos darmos conta, podemos perceber que não há o que fazer, todos são iguais e não vencemos a efemeridade da vida. Um triste pensamento, que pode não condizer com a marcante carreira de John Huston, mas não deixa de ser emblemático se tratar esse justamente seu filme de despedida.

Nota 8

Crítica de “Top Gun: Maverick”: Tom Cruise Brilha em Belas e Realistas Cenas de Vôo

A nostalgia é um sentimento que afeta a pessoa de uma forma que pode trazer benefícios e estimular para objetivos futuros. Em Top Gun: Maverick, Tom Cruise é essa pessoa, não só o ator como personagem. Ambos revisitam o velho lugar de 36 anos atrás que lhe deram prestígio e lembranças marcantes. É nessa emoção que o filme se agarra, mas claro que não se pode contar apenas com isso.

Muito tempo se passou desde o filme original (a maioria dos espectadores de hoje nem era nascida na época do lançamento), e talvez alguém sinta a necessidade de relembrar a narrativa anterior para obter a experiência mais completa. A verdade é que poucos atores que participaram de Top Gun: Ases Indomáveis estão neste novo filme. Tirando Tom Cruise, temos apenas uma pequena participação de Val Kilmer, que fora antagonita e agora é o anjo da guarda. Sempre digo que o que vale é o filme se manter como ele mesmo, sem depender de outras produções. O que importa dizer é que Tom Cruise está de volta à escola de pilotos de caça da Marinha dos Estados Unidos, agora como instrutor de uma nova turma, e com um especial laço afetivo com um de seus alunos, filho de seu colega morto em combate. É na culpa e ressentimento dessa relação que a história vai se desenrolar. O vínculo com o passado, o deixar acontecer, e o livramento são os principais temas tratados.

Falando em Val Kilmer, seu personagem é um nítido exemplo de arte imitando a vida, em uma clara conexão da experiência privada do ator com a trama do filme. Ambos foram acometidos por uma doença que afetou permanentemente suas cordas vocais, impedindo-os de falar naturalmente. Reflexo de um mundo cada vez mais aberto a informações, onde seria impossível não estranhar se houvesse alguma dublagem por cima de suas falas ou que sua participação fosse apenas em imagens, pois querendo ou não, sabemos de sua vida pessoal. O personagem de Tom Cruise também parece ter muitas conexões com o fato de estar sempre ultrapassando seus limites, algo que o ator também se mostra bem afeito, por estar a cada filme tendo um elemento a mais de risco, inclusive insistindo em ser o próprio dublê em cenas cada vez mais perigosas.

Talvez o chamariz do filme sejam as suntuosas e realistas cenas de ação envolvendo perseguição de aviões. Em filmagens muito bem executadas de dentro do cockpit, vemos a alternância de pilotos e suas interações em cada uma de suas missões. Uma bela fotografia do chileno Claudio Miranda, recorrente parceiro do diretor Joseph Kosinski e que já trabalhou em três projetos de Tony Scott, diretor do filme original. Sentimos todo o peso e sofrimento de um piloto ao pilotar uma aeronave a altíssimas velocidades, com toda a tensão de enfrentamento do inimigo e os obstáculos naturais do percurso. Vemos também o belo céu dourado de San Diego reluzindo nos corpos encharcados de suor, marca caracteristica dos filmes de Scott.

Este é o quarto filme de Kosinski (o quinto sairia apenas um mês depois direto na Netflix), o segundo com Cruise como protagonista, onde mostra um competente trabalho principalmente na parte técnica, auxiliado pela marca da produção de Jerry Bruckheimer, o mesmo do original. O filme ainda conta com figuras habituais da filmografia do diretor, como Jennifer Connelly e Miles Teller.

Maverick faz alusão a independência, agir fora das regras, sempre empurrando os limites para um nível acima. Tom Cruise faz isso mais uma vez, e seu personagem supera seu estigma original, tornando-se mais pleno e responsável. Sempre é bom usarmos nossas experiências a nosso favor e elevarmos nosso espírito.

Nota: 8

O Enfermeiro da Noite (2022)

Um paciente em leito de UTI está em seu momento mais fragilizado, dependendo dos cuidados de enfermeiros para conseguir superar seus problemas de saúde. O problema está quando esse profiossional tem instintos assassinos; a chance de sobrevivência é nula e um mínimo rastro é muito pouco improvável. O Enfermeiro da Noite trata de um caso real que talvez seja considerado como um dos maiores serial killers da história, com mais de 400 vítimas. Todas pacientes em leitos hospitalares em situações de extrema vulnerabilidade.

A protagonista desta narrativa é a enfermeira interpretada por Jessica Chastain, colega deste criminoso, interpretado por Eddie Redmayne. Chastain assume um papel que da mesma forma que traz um certo semblante abatido por sua doença no coração, também demonstra força ao não só colaborar nos esforços para capturar o assassino, mas também insistir em manter uma relação sólida com suas filhas pequenas. Por sua vez, Redmayne expressa uma frieza doentia, embora demonstre simpatia com sua colega, o que em muitos momentos causa dubiedade e tensão. Ambos os atores já tiveram seus talentos reconhecidos no cinema, com a vitória do Oscar, e aqui foram capazes de repetir a qualidade, dando bastante apreensão e perturbação.

O filme não trata apenas de uma questão simples de investigação e perseguição a um assassino. Um assunto complementar é o próprio sistema de saúde dos Estados Unidos, que é visto como um verdadeiro negócio, onde empresas não medem escrúpulos a acobertar incidentes, nem tampouco se interessam no bem estar das pessoas, apenas em suas próprias reputações. Ao mesmo tempo, a personagem de Chastain se vê refém desse sistema, já que sua doença a força a trabalhar, sob o risco de não se efetivar no plano de saúde, e assim, arriscar sua própria vida. Essa situação trouxe uma forte relação de companheirismo entre os dois colegas, o que, para a narrativa, deixa tudo mais angustiante e sobrecarregado.

Baseando-se em um bem-sucedido livro do jornalista Charles Graeber, sobre sua investigação desse caso real, a direção é do dinamarquês Tobias Lindholm, conhecido por sua parceria como roteirista nos filmes de Thomas Vinterberg, e por já ter sido previamente indicado ao Oscar de filme estrangeiro. Aqui é seu primeiro trabalho em inglês. É bastante interessante o uso das cores e luzes, já que vemos a princípio o personagem de Redmayne meio que às sombras, o cenário em tons frios, retratando o ambiente hospitalar sem muita vivacidade nem energia. O uso de reflexos em vidros também é bastante explorado para denotar a aparente bondade em um enfermeiro que pode ter uma outra face. A trilha sonora também é basicamente composta de tons graves, tornando a experiência mais depressiva e inquietante.

Um bom enfermeiro é aquele que sabe como executar seu trabalho com ética e seriedade. Qualquer que seja a amplitude de seu conhecimento, se não há empatia com o ser humano, tem algo muito de errado ocorrendo aí. Foi a bondade de uma outra enfermeira, compadecida com a tragédia das vítimas fatais, que fez com que o caso prosseguisse. E foi essa bondade mútua entre os dois colegas que possibilitou o desfecho da atrocidade. Talvez aqui tenhamos mais um exemplo do velho ditado de que o bem sempre vencerá.

Nota: 7

Boa Sorte, Leo Grande (2022)

A intimidade é um recurso no qual sempre nos recorremos para buscar a plenitude. Uma vida a dois pode trazer muitas reflexões sobre nossos desejos e e frustrações. Em Boa Sorte, Leo Grande, o que se mostra é uma relação que aos poucos se escala para o autodescobrimento mútuo, tudo isso usando-se de um único cenário: um quarto de hotel.

Com roteiro da britânica Katy Brand, que é mais conhecida por seus papéis cômicos no cinema, e com direção da australiana Sophie Hyde, em sua primeira produção rodada fora do país, o filme traz o olhar feminino da liberdade e da sexualidade por uma perspectiva onde o que menos importa é o despudor gráfico, sendo privilegiados o sentimento, as confissões e os detalhes implícitos de cada encontro desse inusitado casal. E evidente que tal fator foi crucial ao abordar não só com sensibilidade o fervor das novidades, mas também com a noção de que qualquer mulher pode se sentir atraída, por mais que seu corpo não se encontre em ideais padrões de beleza

E como desvio das normas, observamos uma mulher mais velha, viúva e com uma sólida carreira profissional no ensino religioso, ao encontro de um jovem profissional do sexo. Diferenças tão grandes a princípio, mas que mostram uma gradativa evolução de confiança e aprendizado por meio do convívio descontraído e particular. Emma Thompson, atriz veterana já com dois Oscars na bagagem, se entrega de corpo e alma ao papel, transpirando ao mesmo tempo uma certa autoridade e inquietação na personagem que quer se aventurar em novos rumos. Essa soberba atuação culmina em uma corajosa sequência na qual Thompson se despe de qualquer pudor, com o nobre intuito de expressar o real sentimento da alma feminina em ebulição, qualquer que seja a fase de sua vida.

Embora sejam todos os programas em um mesmo local confinado, os diferentes dias são mostrados de uma forma diferente na medida em que o casal se descobre e se envolve. O uso da câmera em seus angulos e movimentos suaves e bruscos, e a fotografia em dias ensolarados e chuvosos, correm em paralelo com a volatividade e o nível de interação entre os protagonistas. O ritmo vai de uma crescente para para o êxtase final, como numa autêntica relação amorosa.

São as atitudes na vida que nos dão a propulsão para os diversos caminhos do destino. Uma existência reprimida se manifesta em reprimendas educacionais e desilusões familiares. A descarga da aproximação de diferentes polos trazem a noção de que, no fundo, todos têm seus anseios e suas justificativas. A boa sorte vem para quem se deixou viver e finalmente pôde se encontrar, se gostar, e assumir de que valeu a pena a ruptura.

Nota: 7

Sorria (2022)

Eventos traumáticos podem nos deixar vulneráveis por uma vida toda. Saúde mental é importante para seguir em frente e manter relações familiares e profissionais. Quando uma psiquiatra recebe uma paciente, que tira a própria vida na sua frente, difícil não se abalar psicologicamente. O detalhe é que tal paciente esbanjava um largo sorriso durante o cometimento do ato, o que não deixa de ser irônico, já que esta seria a última expressão que se poderia esperar de alguém com tais intenções.

Este é o longa-metragem de estreia de Parker Finn, que por sua vez se baseia em seu próprio curta anterior – Laura Hasn’t Slept (2020) -, e demontra uma plena habilidade em conduzir elementos do terror como ambientações soturnas e angustiantes, situações perturbadoras e imprevisíveis. Porém alguns exageros no uso do jump scare e na incoerência na movimentação de camera dão uma certa perda na qualidade da obra.

A protagonista Sosie Bacon (filha de Kevin Bacon e Kyra Sedgwick) executa um excelente trabalho ao transpor as angústias e o desespero da personagem, que está perdendo aos poucos sua sanidade mental. No transcorrer da história é bastante visível seu declínio psicológico e seu lastimável estado de espírito, com traumas não só atuais, como também de sua infância. O fato de se tratar de uma psiquiatra claro que ajuda no desenrolar da trama, mas também nos dá alguma ansiedade, pois ela tem plena ciência de seu estado mental, o que dá ainda mais desalento.

Vemos aos poucos a personagem perder suas relações amorosas, familiares, profissionais, tudo por conta desse trauma que afligiu por demais a mente dela, deixando-a maluca, tendo alucinações e pensamemtos homicidas. Agora, evidente que existe por trás uma maldição sobrenatural, um espírito maligno que se apodera do corpo da vítima e vai repassando para outros, como uma nova corrente do mal. O filme é bem direto nessas afirmações, o que talvez não precisasse, já que a dubiedade e as múltiplas interpretações são benéficas neste gênero.

Enfim, é uma competente produção, que cumpre com o que promete, que é causar aquele frio na espinha durante a projeção. Longe de se tornar um clássico, no entanto pode vir a dar uma maior visibilidade em futuros projetos do diretor. Um sorriso não é o mais esperado para quem participa da história do filme, mas certamente haverá um sorriso de satisfação em quem está do outro lado da tela.

Nota: 6

Bardo: Falsa Crônica de Algumas Verdades (2022)

A vida de um artista sempre é, de alguma forma, representada em suas obras. Às vezes de forma indireta e tênue, outras de modo explícito e abundante, como neste novo filme de Alejandro G. Iñárritu, onde o diretor busca refletir sobre sua carreira, medos e anseios em uma história de um documentarista de renome internacional que retorna a sua terra natal e tem vislumbres de vários momentos marcantes de sua vida. Por isso, não só isso se mostra uma rica experiência para o cinéfilo que se interessa em descobrir os meandros da mente de um cineasta, como também é um deslumbre aos olhos pela riqueza dos cenários e beleza dos ambientes retratados.

Iñárritu é um diretor de origem mexicana, que logo em seu longa-metragem de estreia – Amores Brutos (2000) – foi indicado ao Oscar de filme estrangeiro. Com o reconhecimento, partiu para Hollywood, ganhando fama mundial. Já ganhador de 2 estatuetas, foi o primeiro de seu país a ter esse feito. É de se compreender, portanto, que o cineasta tenha tantos receios do que pensam sobre seu desprendimento às raízes históricas de seu país de origem. E relevante também observar que estamos diante da relação México – Estados Unidos, que tem uma base muito fixada na exploração, violência, marginalização e preconceito. Então é bem significativa a representação que vai desde a histórica batalha dos Meninos-Heróis na Intervenção Americana no México no século 19, passando por eventos mais cotidianos, como a torturante imigração de trabalhadores na fronteira, e a recente implanatação de um depósito da Amazon no estado mexicano da Baixa Califórnia. O filme também não deixa de mostrar outros aspectos preocupantes, como o desaparecimento de pessoas e o genocídio de indígenas pelos espanhóis. Tudo de forma bastante estilosa e onírica. Literalmente estamos dentro da mente do cneasta, que compartilha conosco esses temores que são tão próprios do povo mexicano na busca de sua identidade.

E não é o caso em que deixamos de ter um aspecto mais intimista de sua vida privada. Aqui, Iñárritu deixa claro que seu intuito principal é por em termo o seu agarramento ao filho primogênito, que faleceu horas depois de nascer. o título Bardo vem de um conceito budista que seria algo como um limbo, um período entre a morte e o renascimento. Inclusive é mencionao por um dos personagens, ao indagar quando que o protagonista iria finalmente deixar de se enlutar pelo filho e permitir sua liberdade a uma próxima jornada. Claro que também vemos outros prismas, como sua relação com seu falecido pai e sua enferma mãe, na busca pelo reconhecimento de que fez o certo e seria motivo de orgulho, e na sua própria relação como marido e pai de dois filhos, do que seria sua contribuição na educação e nas decisões profissionais.

Outro ponto de destaque é a forma em que toda a história é filmada, com longos planos sequencia, com muitos detalhes de design de produção, em lentes grande-angular e com muitas cenas em frente ao espelho, como de costume na filmografia do cineasta. A aparência de um sonho, aliado ao já tratado conceito budista de Bardo, é pertinente quando temos uma revelação de certos temores do artista.

Que este período entre morte e renascimento seja tido como a transição para uma nova fase do cineasta, tendo expurgado todas as mágoas, livrando-se de qualquer culpa. Que sua mente continue nesse estado de inspirado encanto, pela maravilha que é sua visão de mundo. Que venham mais filmes, mostrando sempre um pouco da mente do cineasta, mesmo sendo por falsas crônicas, mas sempre a verdade do que se intenta revelar.

Nota: 9

Os Banshees de Inisherin (2022)

Uma amizade abruptamente desfeita é o ponto de partida desse filme, que retrata o modo de vida de uma remota ilha do norte da Irlanda. Relações interpessoais, dramas internos e um certo toque de comédia são o mote central, tudo em meio a um cenário excessivamente bucólico, no contexto histórico da guerra civil irlandesa do começo dos anos 20. E para tanto, é evidente que um inspirado roteiro, com boas atuações e uma bela fotografia refletem na qualidade da produção, que talvez pudesse ser um pouco mais agitada e impactante para se tornar realmente memorável.

Neste quarto longa-metragem de Martin McDonagh, a parceria entre os astros Colin Farrell e Brendan Gleeson com o diretor é retomada depois de 14 anos, quando se teve o lançamento de Na Mira do Chefe (2008). Aqui a dupla continua afiada, com interpretações bem convincentes e densas. Farrell faz um pacato e simpático camponês, enquanto Gleeson demonstra rancor e uma certa depressão em seu personagem. Certo dia, de repente, sem nenhum motivo, Gleeson desfaz a amizade com Farrell, o que o deixa bastante transtornado e confuso. É dessa dinâmica que se trasncorre o filme, mostrando o desenrolar com resultados trágicos e absurdos.

O filme se destaca por mostrar o tranquilo porém tedioso cotidiano do vilarejo. Lugar onde todos se conhecem e nada muito de importante acontece. Espera-se a vida passar, até a inevitável morte. Talvez esse pensamento tenha dado margem ao interesse nos banshees, seres fantasmagóricos da mitologia irlandesa que surgem para anunciar a morte de alguém. No contexto da narrativa, é a inspiração para a música do personagem de Gleeson, e literalmente uma senhora intrometida que caminha nos arreadores da ilha.

Evidente que devemos nos esforçar para observar outros subtextos, como o ambiente da guerra civil, que é notado apenas de forma esporádica e ao fundo, sem grandes impactos ou efetivas consquências lá. Provável ver um paralelo ao ambiente para os próprios residentes locais, que em vez de batalhas reais, se impingem em lutas de relação, de pai e filho, de conterrâneos, de amigos, ou mesmo internas como o desespero e a depressão podendo assombrar qualquer um.

O uso de luzes nas partes internas e o confronto com os ambientes exteriores são feitos de maneira bem eficiente, que denota a habilidade de McDonagh em preparar enquadramentos bonitos e bem elaborados. A música também é um ponto positivo, que traz uma tranquilidade e serenidade da vida bucólica que preenchem a tela e dão a devida imersão no universo do filme.

Contudo, tudo parece meio parado, sem definição, tal qual a vida dessas pessoas. Amigos existem para darem apoio em momentos bons e ruins. Claro que reduzir amizades em um determinado ponto avançado da vida não daria certo. Por mais que tenhamos vontade de buscar nossos objetivos até o fim, são os amigos que nos empurrarão para a realização. Por mais que tenhamos momentos nublados, sem perspectiva, a falta de uma companhia pode retirar seus bens mais valiosos.

Nota: 6

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (2022)

Um pensamento que sempre aflige as pessoas quando elas se vêem diante de um problema na vida é como seria se tivessem tomado outro tipo de decisão no passado. Será que a vida seria mais fácil, mais bem sucedida? É com essa premissa que o novo filme dos Daniels nos traz uma imensa carga de agito e absurdo para contar uma história que no fundo é sobre relações em família e como assumir sua própria identidade em um mundo multifacetado.

Trata-se do segundo trabalho em longa-metragem dos diretores, onde já mostram uma grande confiança em trazer misturas de gêneros e estilos em prol da narrativa. Temos elementos de filmes de drama, comédia, ficção científica e, principalmente, filmes de kung-fu, trazendo ainda marcas estéticas de grandes autores como Stanley Kubrick e Wong Kar-Wai. Claro, o próprio teor caótico do filme ajuda a não soar forçado ou descabido. Tudo faz sentido em um ambiente onde tudo pode acontecer.

O elenco é bastante convincente e decidido em mostrar o sentimento por trás de uma família desajustada. Composto por atores de descendência asiática, a matriarca Michelle Yeoh se vê em um turbilhão de contratempos e incertezas quando seu marido (interpretado por Ke Huy Quan, antigo astro mirim de Indiana Jones e Os Goonies) pretende pedir divórcio, e sua filha (Stephanie Hsu) está em grave crise existencial no momento em que apresenta sua namorada para o conservador avô (James Hong, de Os Aventureiros do Bairro Proibido). Tudo em meio a uma investigação de fraude de impostos de seu negócio de lavanderia, conduzido por uma auditora não muito amigável (a talentosa Jamie Lee Curtis). É nesse momento de extremo apuro que acontece a revelação das múltiplas realidades e de uma ameaça que pode definir o fim da existência. Pode parecer grandioso, mas suas intenções no filme são das mais intimistas, o que é bom.

Todo o filme na verdade se mostra como a jornada de Michelle Yeoh para o autoconhecimento. A visão de como o mundo deve ser enxergado e como se deve enxergar as pessoas. É a vitória do otimismo, da bondade, sobre o niilismo e o desprazer. E o caminho que ela traça para se chegar a esse fim é dos mais malucos e acelerados. Não se pode negar que este filme tem ritmo, mas um ritmo de montanha russa, que começa leve, passa por uma expectativa de surpresa, depois vem a adrenalina e uma descarga de emoção ao final.

E fica bastante claro que o filme buscou trazer o que se tem de melhor em filmes de luta marcial, com sequências muito bem coreografadas e filmadas de forma a enaltecer movimentos e prezar por sua rapidez, mas que se mantém em sua elegância e dinâmica entre as partes. Os efeitos especiais também são um caso a parte para ser observado, já que não se trata de uma superprodução, e sua qualidade não fica devendo a nenhum filme de grandes estúdios como Disney e Warner Bros. A montagem também é bem destadada, com suas múltiplas micro cenas entecortadas em compassos frenéticos. Outro ponto é o figurino, em que a personagem de Stephanie Hsu é mostrada com roupas cada vez mais absurdas mas ao mesmo tempo muito bem desenhadas, ostentando um poder muito difícil de não se perceber.

A personagem de Hsu talvez seja a mais interessante e a chave que une toda a trama. É dela que vem a ideia mais niilista de universo, uma fonte para a depressão e tendências suicidas. É com o amor materno, com todo o amparo e suporte, que se buscará o salvamento pela plenitude da esperança e da ânsia de viver. É pelo carinho e afeto que se mostrará que, por mais que pareçam erros ou más escolhas, o que vivemos é o melhor que podemos ter, sendo essencial aproveitarmos cada minuto. O segredo talvez seja entender que tudo está em todo lugar ao mesmo tempo.

Nota: 8

Emancipation: Uma História de Liberdade (2022)

A escravidão é uma cicatriz da história da humanidade que nunca será apagada. Filmes como Emancipation trazem a lembrança de como as pessoas podem ser cruéis e desumanas com seus semelhantes. Baseado em uma história real, a mais nova produção estrelada por Will Smith mostra o que a força de liberdade e o amor à família podem fazer a um homem para chegar aos objetivos mais grandiosos.

Emancipation, original da Apple, é o décimo-quinto filme dirigido por Antoine Fuqua, que vem de uma leva de filmes lançados direto no streaming – como O Culpado para a Netflix, e Infinite para a Paramount Plus, ambos de 2021. O diretor não tem um traço autoral tão marcante, mas aqui pode-se destacar o uso de planos aéreos que mostram os perigos de áreas pantanosas e a grandeza de campos de colheita, campos de guerra, e campos de trabalho forçado, com um movimento dinâmico que traz proximidade e uma vertiginosa sensação de realidade. Da mesma forma, sua condução em momentos tensos e conturbados mostra-se eficaz e bem sucedida ao delinear as sequências de ação.

Sendo o primeiro filme lançado após o turbulento momento de sua carreira em que, na mesma noite em que ganhou um Oscar, desferiu um tapa no rosto do apresentador da cerimônia, era de bastante expectativa em como seria a recepção do mais recente trabalho de Will Smith. Suas atuações, em filmes mais dramáticos como este, costumam ter um forte apelo emotivo, onde a tragédia e o pesar causam impacto nas atitudes do personagem. Porém, vê-se que aqui, talvez por conta de se propor uma certa neutralidade ou supressão do sentimento do escravizado, Smith acabe se tornando um ser apático, desanimado em seus impulsos e passivo em suas convicções.

Porém, o que mais chama a atenção nessa produção é o uso da fotografia. Trata-se de um filme que não é nem colorido nem preto-e-branco. É um filme com um tom quase sem cor, onde percebemos de leve alguns tons de verde, vermelho e azul em determinados momentos. Não se deixa claro o real motivo de tal uso na construão narrativa. Penso que poderia demonstrar a falta de vida na visão dos escravizados perante tanta tortura e crueldade. Mas acaba se tornando um efeito sem graça e forçado, que nem é usado de forma concistente na projeção, sendo que em algumas cenas é levemente enaltecido e em outras apagado, sem motivo aparente.

Um aspecto interessante é a estrutura de roteiro, que dá a impressão de estarmos diante de três filmes diferentes (não na estética, mas no conteúdo). Como se fossem os três atos, começa com um filme de escravidão, passa para um de sobrevivência, e termina com um filme de guerra. Tudo para mostrar a trajetória dessa lendária figura que, passando por provas físicas e mentais de superação, se transformou em um símbolo do movimento abolicionista, embora no filme tal relação apareça de forma bem forçada e sem muitas explicações.

A liberdade que é desejada por todos nem sempre se mostra como realmente concedida. Afinal, se a liberdade é quando somos permitidos a fazer muitas coisas, o simples fato de haver permissão já mostra que não há liberdade plena nisso. Se estamos em guerra lutando pela liberdade, o que seriam os soldados se não pessoas presas aos princípios políticos de seus líderes?

Nota: 7

Amsterdam (2022)

A primeira coisa que chama a atenção de Amsterdam é a quantidade de nomes de peso em seu elenco e o fato de se tratar de um novo filme de David O. Russell, que não víamos desde 2015, com Joy. Muitas vezes, o que seria sinônimo de sucesso, pode não ter um resultado excepcional. Neste caso, mesmo não sendo uma obra-prima, está longe de ser uma bomba.

O diretor David O. Russell tem experiência em sátiras políticas, levadas a um certo tom de screwball comedy. Personagens excêntricos e uma intrincada trama são o mote central de sua obra. Amsterdam tem um pouco disso tudo, em uma confusa mistura que pode não agradar a todos os gostos. Talvez haja uma certa dose exagerada tanto na maluquice dos comportamentos e reações dos personagens, quanto na complexidade das peças do quebra-cabeça, que ao final, mostram um quadro simples.

Para dar vida a esse maluco rol de personagens, o filme traz um elenco de grande peso. A trinca de personagens centrais são Christian Bale, John David Washington e Margot Robbie, que fazem amigos que se conhecem na primeira guerra mundial e se vêem no meio de uma conspiração política nos anos 30. E nada menos do que mais de uma dezena de outros astros de Hollywood compõe o time – entre eles, Robert de Niro, Rami Malek, Anya Taylor-Joy, Chris Rock, Taylor Swift, Zoe Saldaña, Timothy Olyphant, Michael Shannon e Mike Myers. Embora seja muito benéfico ter bastante gente famosa no filme, essa experiência acaba causando uma certa distração, já que, pela rapidez da narrativa, somos apresentados em poucos minutos a muitos rostos conhecidos, fazendo parecer mais uma representação forçada de participações especiais do que um importante personagem para a história.

E como história, logo no começo do filme nos é apresentado que a trama se baseia, em grande parte, em um evento real ocorrido nos EUA. Sem revelar muito do desenrolar da trama, devo dizer que tal fato é uma suposta conspiração política durante o governo Roosevelt, mas o único personagem realmente inspirado em uma pessoa real é o vivido por Robert de Niro, um famoso e carismático general do exército americano. A trama até que é interessante, mas seu desenvolvimento é um tanto truncado, com revelações de próximos passos sem muito sentido, ou mesmo com soluções convenientemente apresentadas; simples na elaboração, mas confuso na condução.

Mas a interação entre os 3 protagonistas é boa, mostrada com leveza no humor e suave na carga emotiva. Sua amizade é que se mostra como sendo o real fio condutor da narrativa. Tal mistério e conspiração acabam por ser um pretexto para revelar como devemos buscar o que amamos, que são o fruto de nossas escolhas e não nossas necessidades. A guerra é um círculo vicioso que nunca acaba, devemos aproveitar os momentos bons para nutrir as verdadeiras paixões e nos ajudar a sobreviver às feridas de combate.

Amsterdam é a cidade em que o trio vai se refugiar e nutrir essa amizade durante a guerra. Esse é o alimento que lhes deu um sentido para prosseguir mesmo mais de uma década mais tarde. Talvez seja isso que devemos sempre buscar quando enfrentamos um problema, seja um mal relacionamento familiar ou um general morto por envenenamento.

Nota: 6